sábado, 2 de setembro de 2017

Iminente Risco de Morte



Segundo o Dicionário Informal, risco iminente é o perigo de acontecer um fato indesejado em curto prazo. No caso a ser abordado, trataremos do iminente risco de morte, muito comum no ambiente de emergência hospitalar.

O iminente risco de morte é a condição crítica do paciente diante da linha mais tênue entre a vida e a morte. Motivo de agonia e desespero para os entes queridos, que muitas vezes, mesmo sem acreditar em Deus se apegam a Ele como último fio de esperança à espera de um milagre.

O iminente risco de morte faz parte da nossa vida, afinal viver é um risco. Mas o iminente risco de perder a vida não deve jamais excluir o nosso direito à autonomia e à dignidade. Isso não deve dar a ninguém o direito de suprimir nossa autodeterminação.

Por esse motivo, o assunto em questão visa a compreensão da necessidade de exclusão desse termo do Código de Ética Médica, sob o ponto de vista bioético tão amplamente difundido, com base nos direitos e nas garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.

O Código de Ética Médica estabelece em seu artigo 31 que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

A exceção indicada no artigo quer dizer que se houver iminente risco de morte, o profissional médico deverá desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.

Entretanto, o artigo 34 diz que é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Isto significa que o médico deverá informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos (mesmo se o risco for de morte por fazer ou por deixar de fazer o tratamento) e os objetivos do tratamento, porém, se houver iminente risco de morte, o médico irá desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.

Qual é então o sentido de informar ao paciente, se o próprio Código de Ética permite claramente que a vontade do paciente seja desrespeitada em caso de iminente risco de morte?

O paciente tem o direito de recusar determinado tratamento, inclusive uma transfusão de sangue sob o iminente risco de morte? 

Antes de abordar essa questão, é importante entender os direitos legais dos pacientes para recusar qualquer tipo de tratamento médico ou cirúrgico.

O direito comum da autodeterminação corporal estabelece que toda pessoa de mente sadia é mestra sobre seu próprio corpo. Portanto, tal indivíduo é livre para proibir a cirurgia ou tratamento médico considerado por outros como potencialmente salvavidas. Há mais de 100 anos, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos confirmou o significado da autonomia individual. Afirmou que "nenhum direito é mais sagrado, ou é mais cuidadosamente guardado, pelo direito comum, do que o direito de cada indivíduo à posse e ao controle de sua própria pessoa, livre de toda restrição ou interferência de outros, a menos que por autoridade inquestionável de lei. '

Este princípio jurídico fundamental da autodeterminação corporal serve como base para a doutrina do consentimento informado. Nenhum médico ou hospital deve sujeitar pacientes a médicos e/ou a tratamentos sem o devido consentimento informado. O paciente deve ser informado sobre o tipo de tratamento, os meios a serem utilizados e as prováveis ​​consequências da proposta de tratamento para "determinar conscientemente" o que deve ou não deve ser feito em seu corpo, legitimando assim sua autonomia.

A autonomia é um termo derivado do grego "auto" (próprio) e "nomos" (lei, regra, norma). Significa autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade de o ser humano decidir o que é "bom", ou o que é seu "bem-estar".

A autodeterminação é elemento subjetivo, sendo que cada indivíduo possui suas próprias convicções e um limite diferente daquilo que é aceitável para si. O exercício da autonomia é a prática do direito ao respeito pela liberdade individual, à dignidade da pessoa humana como direito fundamental.

Para o exercício da autonomia existe o termo de consentimento livre e esclarecido. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) é um documento no qual se reduz a termo o processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido do paciente. No documento devem constar as orientações prestadas ao paciente de maneira clara, direta e individualizada, com destaque para: descrição do tratamento proposto, seus riscos e benefícios para o paciente tendo em vista a sua condição clínica individual, e eventuais cuidados pós-tratamento e prognóstico. É preciso, ainda, constar o direito de revogação do consentimento a qualquer tempo, esclarecendo não haver qualquer ônus ao paciente.

Vale ressaltar que o paciente precisa ser devidamente esclarecido para livremente consentir ou não consentir determinado tratamento. Qual é então o objetivo e a validade desse termo se no final das contas o médico fizer o que quiser?

O relatório da Comissão para o Estudo dos Problemas Éticos em Medicina nos Estados Unidos revelou que o consentimento informado baseia-se em dois valores muito importantes: a própria concepção do bem-estar pessoal do paciente; e o direito à autodeterminação. Esta comissão concluiu também que o princípio da autodeterminação "é melhor entendido como o respeito pelo direito das pessoas de definir e seguir seu próprio ponto de vista sobre o que é bom". Uma decisão histórica da Suprema Corte da Califórnia, determinou que os médicos deveriam obter o consentimento informado dos pacientes antes de realizar certos procedimentos médicos. Há mais de 90 anos, O juiz Benjamin Cardozo declarou: "Todo ser humano adulto e com a mente saudável tem o direito de determinar o que deve ser feito com o seu próprio corpo; e um cirurgião que realiza uma cirurgia sem o consentimento de seu paciente, comete uma agressão, pelo qual ele é responsável por danos.”

Portanto, os médicos que administram um tratamento ou realizam uma cirurgia sem o consentimento do paciente é responsável por agressão. Uma operação cirúrgica no corpo de uma pessoa é uma agressão técnica ou transgressão, a menos que essa pessoa ou alguma outra pessoa autorizada tenha consentido, independentemente da habilidade e cuidados empregados no desempenho da operação.

A doutrina do consentimento informado estabelece que o paciente possui o direito de consentir ou não consentir, ou seja, tem o direito de recusar o tratamento, mesmo se o paciente recusa um tratamento que é considerado pelo médico como único sustentador da vida, pois a autodeterminação do paciente garante a ele a autoridade final para decidir.

As leis são normas de conduta criadas e impostas por um conjunto de instituições para regular as relações sociais. As leis não criaram o homem mas foram criadas pelo homem para proteger o direito de cada um em relação à sociedade.

Assim sendo, o indivíduo, sujeito do direito, utiliza-se das leis para sua proteção, para proteger seu direito de escolha, seu direito de exercer sua autonomia desde que não interfira nos direitos da sociedade como um todo. O médico que respeita a autonomia do paciente não viola nenhum direito da sociedade, mesmo se a escolha consciente do tratamento ou até mesmo a recusa de determinado tratamento resultar em morte.

O médico precisa entender que o poder de vida e morte não está nas suas mãos, com a exceção óbvia da prática de crime, como homicídio, negligência, imperícia ou imprudência, ou até mesmo um erro por acidente. Ele jamais poderá garantir que a aplicação de determinado tratamento ou sua recusa salvará ou não a vida do paciente.

O artigo 32 estabece que é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

A utilização de todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, não dá direito ao médico de escolher o tratamento que ele acha mais adequado para o paciente, uma vez que o próprio artigo determina que tal tratamento deve ser em favor do paciente.

Se o médico escolher um tratamento em detrimento da vontade do paciente, ele jamais estará agindo em favor do paciente.

Desrespeitar é violar. Desrespeitar é agredir. Vejamos dois exemplos como comparação:

Primeiro exemplo: Um casal está conversando no bar, ambos estão bebendo. O rapaz diz que quer fazer sexo com a moça, ela nega. No momento em que ela está perdendo a consciência ele a estupra. Houve a violação da vontade. A moça foi violada em sua honra, integridade e dignidade. Houve um crime. Não há na lei nenhuma exceção que dá ao rapaz o direito de violar a vontade da moça, por exemplo, salvo em perda de consciência da vítima.

Segundo exemplo: Testamento é a manifestação de última vontade pelo qual um indivíduo dispõe, para depois da morte, em todo ou uma parte de seus bens. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. O testamento deve submeter-se a numerosas formalidades que não podem ser descuidadas ou violadas, sob pena de nulidade. Um dos valores necessários à preservação do testamento é: assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o falecimento, confirmar sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa.

E se houvesse uma exceção como essa: “assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o falecimento, confirmar sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa, salvo em iminente risco de morte.”

A exceção daria ao tabelião o direito de dispor dos bens do testador da forma que lhe conviesse no momento do iminente risco de morte do testador, ou seja, a vontade expressamente declarada do testador poderia não ser respeitada.

Da mesma forma é o “salvo iminente risco de morte” como exceção à vontade do paciente diante da escolha de tratamento médico ou de sua recusa.

Costumo dizer que não há no mundo ninguém mais interessado na minha vida, saúde e bem estar do que eu mesma. É claro que há muitos médicos realmente apaixonados pela profissão, que possuem o genuíno desejo de ajudar o próximo e fazer o bem, mas ainda assim, ele não é mais interessado na minha vida, saúde e bem estar do que eu mesma.

Sejamos honestos, o não respeito pela vontade do paciente sob a alegação hipocrática e o desejo obsessivo de salvar vidas, na maioria das vezes é medo de ser responsabilizado.

É descabido pensar que o médico será responsabilizado por ter respeitado a vontade do paciente.

_________________________________________________________________________________

Referências:

Direito de Escolha do Menor em Lisboa

Tribunal da Relação de Lisboa Íntegra da Reportagem Um jovem de 16 anos diagnosticado com leucemia aguda  recusa-se a receber qualquer trans...