sábado, 20 de outubro de 2018

Direito de recusa de Transfusão de Sangue

Aspectos bioéticos e legais


A Medicina sem Sangue já é uma realidade no cenário mundial. A ampla divulgação do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente (em inglês PBM - Patient Blood Management) tem mudado a maneira em que o sangue é administrado. Com base nas novas técnicas e em experiências positivas da medicina sem sangue, os profissionais começaram a ampliar esse novo e melhorado método de tratamento para pacientes em escala global, de modo que não é mais possível afirmar que a transfusão de sangue é o único método de tratamento para a estabilização do paciente. 

Segundo a Bioética, o direito à vida não pode ser apartado da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental de um Estado Democrático de Direito, sendo que as questões humanas só podem ser consideradas sob a égide dos princípios bioéticos fundamentais da autonomia, beneficência, não-maleficência, justiça e equidade. O direito à vida é garantido constitucionalmente e pressupõe não apenas o direito de existir biologicamente, mas o direito de existir com autonomia, liberdade e dignidade. Portanto, vida sem dignidade não é vida com qualidade. 

O paciente tem direito de consentir ou recusar procedimentos, diagnósticos ou terapêuticas a serem nele realizados. Deve consentir de forma livre, voluntária e esclarecida por meio de informação adequada e detalhada.

  • Quando o paciente é adulto e capaz, e expressa sua vontade de forma livre, consciente, inequívoca e legal, não se exige a tutela do Estado; 
  • O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) isenta os médicos, equipe e hospital de qualquer ação judicial, desde que se respeite a vontade do paciente; 
  • A informação adequada sobre os riscos do procedimento que o paciente será submetido tem por objetivo justamente seu consentimento ou sua recusa, caso contrário, não seria necessário o consentimento informado; 
  • Desrespeitar a vontade do paciente é uma grave violação dos Direitos Humanos; 
  • Independente de crença, o paciente tem o direito de decidir livremente qual tratamento deseja para si, assim como tem o direito de recusar livremente o tratamento que não deseja receber;
  • Mesmo sob a alegação de convicções religiosas, a Constituição Federal garante a inviolabilidade de consciência e crença; 
  • Seu direito de escolha com base na autonomia de vontade não fere nenhum direito alheio, mas diz respeito apenas a si próprio; 
  • O tratamento com sangue agride sua integridade física, moral e espiritual, trazendo-lhe malefícios; 
  • Não há colisão de direitos entre a vida e a liberdade, uma vez que a escolha de tratamento não é repúdio à vida, além de ser leviano dizer que a transfusão de sangue salva vidas; 
  • A transfusão de sangue não é e nunca foi garantia de vida, além de trazer inúmeros riscos para o paciente.

Tribunais de outros países, há muito tempo têm decidido em favor dos pacientes que desejam ter seus direitos de escolha respeitados, bem como rejeitado apelações de médicos que desrespeitaram esses direitos, como por exemplo:

Recurso de Apelação na Suprema Corte da Carolina do Sul, Estados Unidos da América
HARVEY v. STRICKLAND, 350 S.C. 303 (2002)

O paciente alega ter recebido transfusões de sangue de forma não desejada dois dias após cirurgia eletiva da artéria carótida. O paciente é Testemunha de Jeová; O apelante moveu ação contra os médicos, alegando descumprimento de contrato, falta de consentimento livre e esclarecido, erro médico e violação intencional dos seus direitos. O tribunal de primeira instância determinou não haver base probatória suficiente para que o júri pudesse chegar a uma conclusão.
O paciente assinou formulários intitulados "Recusa de Tratamento / Isenção de Responsabilidade" e "Consentimento para a Cirurgia". Os documentos indicam que ele se recusou a aceitar transfusão de sangue ou hemoderivados, e que compreendeu plenamente os riscos associados referentes à sua recusa, isentando os médicos e equipe de ações judiciais de qualquer natureza. No dia anterior à cirurgia, o paciente assinou um outro termo de consentimento, indicando que "não autorizava o médico a utilizar sangue ou hemoderivados, mesmo em caso de necessidade." A Suprema Corte reconhece que a doutrina do consentimento implícito se aplica aos médicos da Carolina do Sul e que o erro médico é causa de ação judicial decorrente da falta de consentimento. Sob essa doutrina, o médico tem o dever de revelar ao paciente o diagnóstico, os riscos, os benefícios, as alternativas, etc., de quaisquer procedimentos que o médico se proponha a realizar. A informação deve ser dada a "um paciente consciente, para que na ausência de consciência em caso de emergência, seja garantido ao paciente um tratamento médico imediato". Como o paciente estava inconsciente e uma situação de emergência foi apresentada, o médico afirmou que foi obrigado a buscar o consentimento da mãe do paciente para que a transfusão de sangue pudesse ser realizada, fato que a Suprema Corte discordou. A Suprema Corte dos Estados Unidos entende que não há direito mais valioso e que deva ser resguardado pela “Common Law”, do que o direito de cada indivíduo de exercer sua autodeterminação. O direito à liberdade de escolha de tratamento já é há muito tempo reconhecido nos Estados Unidos. Todo ser humano adulto e capaz tem o direito de determinar o que será feito com seu próprio corpo. O direito individual de tomar decisões vitais afeta a vida privada, de acordo com a consciência individual e esse é o fundamento principal do país. A Suprema Corte dos Estados Unidos reconhece que um paciente adulto e capaz, tem o direito de rejeitar qualquer ou todas as formas de intervenção médica, inclusive tratamento para salvar ou prolongar a vida. O tratamento dado ao paciente foi contrário às instruções claras e inequívocas que o paciente expressou em tempo, quando estava plenamente apto a consentir. O paciente alegou ter recebido instruções claras e estava plenamente ciente dos riscos, inclusive sabia que sua chance de recuperar sua saúde para uma vida normal seria reduzida. O paciente ainda isentou o médico e sua equipe de quaisquer responsabilidades pela sua decisão de recusar transfusão de sangue. A transfusão não era necessária e procedimentos alternativos sem sangue estavam à disposição dos médicos.
A Suprema Corte acolheu o recurso de apelação, concordou que houve descumprimento de contrato, entendeu que a decisão da primeira instância foi incorreta e determinou que fosse encaminhada para um novo julgamento, reconheceu que houve danos emocionais causados pela má conduta do médico e que qualquer violação de um direito legal incorre em danos, autorizando a propositura de uma ação de reparação de danos.

Suprema Corte de Tokyo, Japão Date of the Judgment 2000.2.29 
Case Number 1998(O)Nos.1081, 1082

A Suprema Corte rejeitou recurso de apelação de médico processado por responsabilidade civil por ter realizado transfusão de sangue sem consentimento da paciente.
A paciente foi informada que tinha um tumor maligno no fígado. Como o médico lhe disse que era impossível realizar a cirurgia sem transfusão de sangue, a paciente procurou uma outra instituição médica onde seria capaz de fazer a cirurgia sem sangue. O médico desta instituição disse que seria possível realizar a cirurgia sem transfusão de sangue, se não houvesse metástase. Antes da cirurgia, a paciente fez uma declaração que foi devidamente assinada por ela e pelos médicos, onde afirmava que se recusaria a receber transfusão de sangue, isentando a equipe médica, funcionários e o hospital de quaisquer danos decorrentes por sua recusa. Durante a cirurgia para a retirada do tumor, a paciente perdeu cerca de 2.245 mililitros, e os médicos decidiram transfundir. Após receber alta do Hospital a paciente faleceu.O médico estava ciente de que a paciente havia entrado no hospital com a intenção de fazer a cirurgia para a retirada do tumor, e que não aceitaria transfusão de sangue sob hipótese alguma por razão de suas convicções religiosas. Embora o médico estivesse ciente de que uma transfusão pudesse ser necessária durante a cirurgia, ele não explicou para a paciente da possibilidade de transfundir, se não houvesse outro jeito de salvar a sua vida, de modo que optou por fazer a transfusão de sangue na paciente sem o seu consentimento. Diante das condições indicadas, o médico privou a paciente do seu direito de decidir livremente em fazer ou não a cirurgia. Portanto, o médico deve ser responsabilizado civilmente pelos danos morais em compensação ao sofrimento mental provocado na paciente por conta desta situação.
A Suprema Corte entendeu que quando um paciente expressa sua recusa em receber qualquer tratamento médico, envolvendo uma transfusão de sangue por causa de suas crenças religiosas, o direito de tomar tal decisão deve ser respeitado, por se tratar de direitos pessoais. Os médicos deveriam ter explicado para a paciente que a política do Hospital era a de transfundir em casos emergenciais, deixando que a paciente pudesse decidir se faria a cirurgia ou não. Uma pessoa que viola intencionalmente ou de forma negligente o direito de outra pessoa, é obrigada a indenizá-la por danos decorrentes dessa violação. O acórdão foi proferido de forma unânime.

A fundamentação dessas decisões se baseia adicionalmente no fato de que diante dos avanços tecnológicos e das pesquisas médicas atuais, não é mais possível aceitar a afirmação de que as transfusões de sangue sejam a única opção para o paciente. 

O próprio Código de Ética Médica declara que os médicos têm o dever de se manterem informados e atualizados com relação às novas técnicas disponíveis e por isso, eles precisam deixar de lado qualquer preconceito com relação à religião, pois se por um lado há uma motivação religiosa por parte das Testemunhas de Jeová, por outro lado, novas técnicas em opções terapêuticas não tem qualquer relação com religião, mas sim, diz respeito à uma ampliação do conhecimento do profissional da saúde.

Como já dito anteriormente, assim como qualquer profissional que deseja atingir a excelência, o médico deve tornar-se perito na arte médica, sendo imprescindível o estudo e a atualização constante, de modo a estar ciente de todos os meios disponíveis e atuais de diagnósticos e tratamentos cientificamente reconhecidos, a fim de usá-los em benefício do paciente.



Julgados disponíveis em:


http://www.courts.go.jp/app/hanrei_en/detail?id=478

Nota: Também publicado no site Jusbrasil:

https://elainefrancoadv.jusbrasil.com.br/artigos/640178941/direito-de-recusa-de-transfusao-de-sangue

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

BIOÉTICA e as questões controversas em cuidados da saúde



A bioética é um estudo interdisciplinar e seu tema abrange muitos dos assuntos mais controversos e importantes que a sociedade contemporânea enfrenta, incluindo questões éticas difíceis relacionadas à autonomia do paciente em escolhas de tratamento médico, autonomia do médico, recursos escassos para tratamentos de saúde, morte assistida, clonagem humana, aborto, reprodução artificial, engenharia genética, transplante de órgãos, uso da maconha medicinal, etc.

Os bioeticistas profissionais vêm de uma ampla variedade de origens. Muitos eram filósofos acadêmicos ou médicos, mas atualmente os profissionais podem incluir enfermeiros, assistentes sociais, clérigos, advogados, cientistas pesquisadores e demais interessados. O trabalho real dos bioeticistas transcende as esferas pública e clínica.

O papel público dos bioeticistas envolve escrever e discutir sobre as controvérsias mais desafiadoras existentes atualmente, muitas vezes lidando com o impacto de novas tecnologias, como xenotransplantes ou reprodução assistida. Em ambientes hospitalares, os bioeticistas consultam os profissionais da saúde, pacientes e familiares para ajudá-los a abordar as questões éticas que surgem durante a prestação de cuidados médicos.

Quatro princípios geralmente orientam as decisões da bioética: 
  • Autonomia, o direito dos pacientes de tomar suas próprias decisões e determinar os cuidados de saúde que desejam receber de forma livre e esclarecida; 
  • Não-maleficência, a regra de que os médicos não devem “causar danos” aos pacientes; 
  • Beneficência, a obrigação dos profissionais da saúde de contribuírem para o bem-estar dos pacientes; 
  • Justiça, o objetivo de tratar todos os pacientes de forma justa e garantir acesso equitativo aos serviços médicos. 

O princípio da Autonomia é um dos princípios orientadores da bioética contemporânea, garantindo aos pacientes a ampla liberdade para tomar suas próprias decisões médicas.

Uma questão controversa surge, por exemplo, quando os pacientes recusam determinados cuidados ou querem deixar o hospital contra o conselho de seus médicos. Muitas vezes, recorre-se aos tribunais para que se determine quando e sob quais circunstâncias um paciente ou sua família pode recusar o atendimento.

Nas décadas de 1960 a 1990, esse foi um dos assuntos mais debatidos na bioética. Uma série de casos da Suprema Corte estabeleceu como regra geral que pacientes adultos competentes podem recusar atendimento médico indesejado. As Testemunhas de Jeová, por exemplo, têm permissão para rejeitar transfusões de sangue.

Uma questão relacionada foi se as famílias de pacientes com métodos de suporte à vida tinham o direito de remover tubos de alimentação ou ventiladores se seus parentes tivessem pouca chance de recuperação. O caso mais famoso foi o de Karen Ann Quinlan (1954-1985), uma jovem de New Jersey que estava em coma, cuja família tentou remover seu respirador para que ela pudesse morrer “com graça e dignidade”. A Suprema Corte de Nova Jersey decidiu a favor da família e o respirador foi removido, mas Quinlan viveu mais 10 anos sem recuperar a consciência.

Em um segundo caso semelhante, o de Nancy Cruzan (1957-1990) do Missouri, a Suprema Corte dos Estados Unidos determinou que sua família tinha o direito de retirar o suporte de vida apenas se existisse evidência “clara e convincente” de que isso era o que a paciente tinha assim desejado.

Durante os primeiros anos do século XXI, a questão do direito de retirar os cuidados médicos tornou-se altamente politizada, com envolvimento de figuras nacionais incluindo o presidente George W. Bush, como no caso de Terri Schiavo (1963-2005).

As diretrizes antecipadas de vontade permitem que as pessoas especifiquem com antecedência quais cuidados elas gostariam ou não de receber se perdessem a capacidade de tomar suas próprias decisões médicas. Uma pessoa também pode nomear um procurador para sua assistência médica: um parente ou amigo que tomará decisões por ele ou ela nos casos de inconsciência.

As questões bioéticas podem ser melhor compreendidas se utilizarmos a empatia e fizermos a nós mesmos perguntas, tais como:

O que é qualidade de vida para você?
Qual o mínimo de qualidade de vida você considera aceitável?
Você desejaria permanecer em suporte de vida (por exemplo, um ventilador) se não tivesse chance de recuperar a consciência?
Você gostaria de receber tratamento ativo para mantê-lo vivo se tivesse demência avançada?
Se você não fosse mais capaz de se comunicar com seus entes queridos?
Você desejaria ser mantido vivo por meios artificiais se fosse paralisado do pescoço para baixo?
Você gostaria de viver permanentemente em um lar de idosos?
Qual pessoa você gostaria que tomasse decisões sobre cuidados de saúde para você?
O que deveria ser incluído no testamento vital ou nas diretivas antecipadas de vontade?
Até onde os médicos devem ir para salvar a vida de alguém?

Os pacientes estão cada vez mais informados e querem decidir sobre o tratamento a que serão submetidos, e a bioética tem por objetivo incentivar as participações colaborativas entre médicos e pacientes, buscando levar em consideração a boa comunicação, os medos, as dúvidas e os desejos dos pacientes, para que, diante de sua vulnerabilidade, tenham a garantia de um tratamento digno segundo a sua consciência.
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Fonte:

Direito de Escolha do Menor em Lisboa

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