Será que realmente não há risco de transmissão por meio de transfusão de sangue ou derivados?
Em 10 de fevereiro de 2020, havia
mais de 43 mil pacientes confirmados positivos pelo teste de ácido nucleico na
China e em 23 outros países, e causou 1.017 mortes devido a insuficiência
respiratória aguda ou outras complicações relacionadas. Além disso, mais de
21 mil pessoas com suspeitas de infecção foram isoladas para aguardarem o
teste.
Em 31 de janeiro, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) anunciou o surto de COVID-19 na China como uma
emergência de saúde pública de interesse internacional. Embora o coronavírus infecte geralmente o
trato respiratório superior ou inferior, é comum a disseminação viral no plasma
ou soro. Portanto, ainda existe um risco teórico de transmissão de coronavírus
através de transfusão de sangue e derivados.
Estudos
anteriores indicaram que o RNA[1] viral pode ser detectado
no plasma ou soro de pacientes infectados com SARS[2]-CoV, MERS[3]-CoV ou SARS-CoV-2 diferentes períodos após o início dos
sintomas. Embora a OMS tenha observado em 2003 que nenhum caso de SARS-CoV foi
relatado devido à transfusão de produtos sanguíneos, ainda havia um risco
teórico de transmissão do SARS-CoV por transfusão. Com mais e mais infecções assintomáticas sendo encontradas nos
casos de COVID-19, a segurança do sangue é digna de consideração.
Até agora, sete tipos de coronavírus infectaram humanos e causaram
doenças respiratórias. Quatro de sete são CoVs humanos comuns (HCoVs), geralmente
levando a doenças respiratórias superiores autolimitadas comuns: HCoV-229E,
HCoV-OC43, HCoV-NL63 e HCoV-HKU1. Esses vírus ocasionalmente podem causar
doenças mais graves em jovens, idosos ou indivíduos imunocomprometidos.
Muitos estudos descobriram que o RNA
da SARS-CoV pode ser detectado no plasma de pacientes com SARS, mesmo sendo uma
doença respiratória. O primeiro relatório publicado em 10 de abril de 2003
indicou que existiam concentrações extremamente baixas de RNA viral no plasma
de um paciente com SARS durante a fase aguda da doença, 9 dias após o início
dos sintomas.
O conteúdo viral do plasma era baixo
e com base neste estudo e em outras informações, a OMS e a Food and Drug Administration dos EUA (FDA) elaboraram recomendações
sobre segurança do sangue e apontaram um risco teórico de transmissão do vírus
SARS por transfusão de produtos sanguíneos.
Eles também recomendaram alguns princípios de precaução em relação
ao adiamento da doação de sangue por indivíduos de áreas com transmissão local
recente. Além disso, os doadores de sangue devem informar as agências de coleta
se forem diagnosticados como pacientes suspeitos ou confirmados com SARS dentro
de um mês após a doação e, nesses casos, seriam feitos esforços para rastrear
os destinatários ou recuperar quaisquer produtos derivados de sangue não
transfundidos.
Mais tarde, dois estudos se concentraram em novos métodos para
detecção de RNA de SARS-CoV. Semelhante ao primeiro estudo, a concentração
viral média foi baixa em pacientes que apresentavam sintomas relativamente
leves e não necessitaram de internação em unidade de terapia intensiva no hospital.
Os pesquisadores descobriram que os linfócitos têm uma
concentração muito maior de RNA de SARS-CoV do que o plasma, seja testado na
fase aguda ou na fase convalescente, embora o RNA viral plasmático de apenas 5
pacientes na fase aguda e 5 na fase convalescente tenha sido detectado.
Foi posteriormente demonstrado que o SARS-CoV poderia não apenas
infectar linfócitos, mas também replicá-los de maneira autolimitada. Esses
achados forneceram evidências de que os linfócitos podem ser um dos alvos da
SARS-CoV e indicaram o potencial de um risco de transmissão por produtos
derivados do sangue com altas concentrações de linfócitos doadores
(células-tronco do sangue periférico, medula óssea, concentrados de
granulócitos, etc.).
Embora esses achados tenham fornecido algumas evidências de que o
SARS-CoV realmente existia no plasma ou linfócitos de pacientes com SARS,
nenhum país incluindo aqueles com transmissão local de SARS e nenhuma
organização incluindo a OMS e a Associação Americana de Bancos de Sangue (AABB)
recomendaram a triagem de doadores para RNA SARS-CoV ou anticorpos relacionados
com base nos seguintes fatos:
(1) os pacientes com SARS não transmitem a infecção no período de
tempo de incubação e o tempo de incubação é relativamente curto;
(2) quase todas as pessoas infectadas com SARS-CoV apresentam
sintomas graves e poucos portadores assintomáticos foram encontrados;
(3) dados mostraram que a carga viral do plasma de pacientes com
SARS era baixa, nenhum caso de transmissão transfusional foi relatado até o
momento, e estudos que examinaram doações de sangue para RNA SARS-CoV em 2003
não identificaram nenhum resultado positivo.
No entanto, uma visão alternativa foi expressa em 2004.
Pesquisadores em Hong Kong descobriram que testes de plasma em 3 de 400
doadores de sangue saudáveis e em 1 de 131 pacientes pediátricos não
pneumônicos coletados durante o surto de SARS apresentaram resultado positivo
para anticorpos IgG para SARS-CoV.
Como Hong Kong estava entre as regiões mais atingidas do mundo
durante o surto de SARS em 2002-2003, eles concluíram que, em Hong Kong,
existiam infecções sub-clínicas ou não pneumônicas por SARS-CoV, indicando um
risco potencial de transmissão do vírus SARS por meio de produtos derivados de
sangue.
Os indivíduos com COVID-19
geralmente apresentam febre e sintomas do trato respiratório inferior, e o
tempo estimado de incubação é de 14 dias. Dados limitados mostraram que o
RNA viral pode ser detectado no plasma ou soro de pacientes com COVID-19.
Foi relatado um agrupamento familiar
de COVID-19 em Shenzhen, China, e verificou-se que o soro em 1 de 6 pacientes
em uma família mostrou um resultado positivo fraco para o RNA da SARS-CoV-2 e
uma criança de 10 anos foi confirmada ser portador assintomático.
Com a disseminação do vírus em todo
o mundo, relatórios do Vietnã, Alemanha e Estados Unidos descreveram os
sintomas clínicos, diagnóstico e tratamento do COVID-19. Entretanto, um
relatório controverso sugeriu a transmissão por contato com uma pessoa que não
apresentava sintomas na Alemanha.
Um indivíduo da China participou de
reuniões de negócios na Alemanha e infectou pelo menos 2 colegas de trabalho
durante o período de incubação. Este relatório sugeriu que, ao contrário da
SARS, os pacientes com COVID-19 podem transmitir a infecção durante um período
de incubação assintomática. Além disso, os pesquisadores não detectaram
RNA viral de amostras colhidas no paciente durante o período de incubação.
Como a infecção continua exigindo
atenção urgente na China e está sendo monitorada de perto em todo o mundo, os
seguintes pontos podem ser relevantes para considerações sobre transfusão e
transplante de órgãos:
(1) RNA viral no plasma ou soro pode
ser detectado em pacientes com COVID-19 nos primeiros 2 ou 3 dias após o início
dos sintomas;
(2) a maioria dos pacientes,
especialmente os adultos mais jovens que podem doar sangue, apresentava
sintomas mais leves que os idosos;
(3) pacientes sem febre e portadores
assintomáticos foram identificados na China, o que aumenta a possibilidade de
um paciente ou portador de vírus COVID-19 doar sangue;
(4) a taxa de infectividade dos
pacientes que estão no período de incubação permanece incerta e não há dados
sobre a carga viral no plasma, soro ou linfócitos entre os indivíduos no
período de incubação.
Embora o coronavírus cause principalmente infecções respiratórias leves e graves, o potencial de transmissão por transfusão é digno de consideração. Estamos diante de muitas incógnitas e um monitoramento cuidadoso e novos estudos devem continuar. Os próximos meses fornecerão uma enorme quantidade de novas informações sobre SARS-CoV-2 e COVID-19, informações que nos permitirão tomar decisões sobre esse novo vírus e sobre a segurança pública.
[1] RNA
- ácido ribonucleico - molécula responsável pela síntese de proteínas das
células do corpo.
[2] SARS
- Síndrome respiratória aguda grave geralmente abreviada SARS (do inglês - Severe Acute Respiratory Syndrome).
[3] MERS
- Síndrome respiratória do Oriente Médio (do inglês - Middle East Respiratory Syndrome).
____________________________________________________________________
Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0887796320300146. Acesso em 18/03/2020.