Aspectos bioéticos e legais
A Medicina sem Sangue já é uma realidade no cenário mundial. A ampla divulgação do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente (em inglês PBM - Patient Blood Management) tem mudado a maneira em que o sangue é administrado. Com base nas novas técnicas e em experiências positivas da medicina sem sangue, os profissionais começaram a ampliar esse novo e melhorado método de tratamento para pacientes em escala global, de modo que não é mais possível afirmar que a transfusão de sangue é o único método de tratamento para a estabilização do paciente.
Segundo a Bioética, o direito à vida
não pode ser apartado da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental de
um Estado Democrático de Direito, sendo que as questões humanas só podem ser
consideradas sob a égide dos princípios bioéticos fundamentais da autonomia,
beneficência, não-maleficência, justiça e equidade. O direito à vida é
garantido constitucionalmente e pressupõe não apenas o direito de existir
biologicamente, mas o direito de existir com autonomia, liberdade e dignidade.
Portanto, vida sem dignidade não é vida com qualidade.
O paciente tem direito de consentir
ou recusar procedimentos, diagnósticos ou terapêuticas a serem nele realizados.
Deve consentir de forma livre, voluntária e esclarecida por meio de informação
adequada e detalhada.
- Quando o paciente é adulto e
capaz, e expressa sua vontade de forma livre, consciente, inequívoca e
legal, não se exige a tutela do Estado;
- O Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE) isenta os médicos, equipe e hospital de
qualquer ação judicial, desde que se respeite a vontade do paciente;
- A informação adequada sobre os
riscos do procedimento que o paciente será submetido tem por objetivo
justamente seu consentimento ou sua recusa, caso contrário, não seria
necessário o consentimento informado;
- Desrespeitar a vontade do
paciente é uma grave violação dos Direitos Humanos;
- Independente de crença, o paciente tem o direito de decidir livremente qual tratamento deseja para si, assim como tem o direito de recusar livremente o tratamento que não deseja receber;
- Mesmo sob a alegação de
convicções religiosas, a Constituição Federal garante a
inviolabilidade de consciência e crença;
- Seu direito de escolha com base
na autonomia de vontade não fere nenhum direito alheio, mas diz respeito
apenas a si próprio;
- O tratamento com sangue agride
sua integridade física, moral e espiritual, trazendo-lhe malefícios;
- Não há colisão de direitos
entre a vida e a liberdade, uma vez que a escolha de tratamento não é
repúdio à vida, além de ser leviano dizer que a transfusão de sangue salva
vidas;
- A transfusão de sangue não é e nunca foi garantia
de vida, além de trazer inúmeros riscos para o paciente.
Tribunais de outros países, há muito
tempo têm decidido em favor dos pacientes que desejam ter seus direitos de
escolha respeitados, bem como rejeitado apelações de médicos que desrespeitaram
esses direitos, como por exemplo:
Recurso de
Apelação na Suprema Corte da Carolina do Sul, Estados Unidos da América
HARVEY v.
STRICKLAND, 350 S.C. 303 (2002)
O
paciente alega ter recebido transfusões de sangue de forma não desejada dois
dias após cirurgia eletiva da artéria carótida. O paciente é Testemunha de
Jeová; O apelante moveu ação contra os médicos, alegando descumprimento de
contrato, falta de consentimento livre e esclarecido, erro médico e violação
intencional dos seus direitos. O tribunal de primeira instância determinou não
haver base probatória suficiente para que o júri pudesse chegar a uma
conclusão.
O
paciente assinou formulários intitulados "Recusa de Tratamento / Isenção
de Responsabilidade" e "Consentimento para a Cirurgia". Os
documentos indicam que ele se recusou a aceitar transfusão de sangue ou
hemoderivados, e que compreendeu plenamente os riscos associados referentes à
sua recusa, isentando os médicos e equipe de ações judiciais de qualquer
natureza. No dia anterior à cirurgia, o paciente assinou um outro termo de
consentimento, indicando que "não autorizava o médico a utilizar sangue ou
hemoderivados, mesmo em caso de necessidade." A Suprema Corte reconhece
que a doutrina do consentimento implícito se aplica aos médicos da Carolina do
Sul e que o erro médico é causa de ação judicial decorrente da falta de
consentimento. Sob essa doutrina, o médico tem o dever de revelar ao paciente o
diagnóstico, os riscos, os benefícios, as alternativas, etc., de quaisquer
procedimentos que o médico se proponha a realizar. A informação deve ser dada a
"um paciente consciente, para que na ausência de consciência em caso de
emergência, seja garantido ao paciente um tratamento médico imediato".
Como o paciente estava inconsciente e uma situação de emergência foi
apresentada, o médico afirmou que foi obrigado a buscar o consentimento da mãe
do paciente para que a transfusão de sangue pudesse ser realizada, fato que a
Suprema Corte discordou. A Suprema Corte dos Estados Unidos entende que não há
direito mais valioso e que deva ser resguardado pela “Common Law”, do que o
direito de cada indivíduo de exercer sua autodeterminação. O direito à
liberdade de escolha de tratamento já é há muito tempo reconhecido nos Estados
Unidos. Todo ser humano adulto e capaz tem o direito de determinar o que será
feito com seu próprio corpo. O direito individual de tomar decisões vitais
afeta a vida privada, de acordo com a consciência individual e esse é o
fundamento principal do país. A Suprema Corte dos Estados Unidos reconhece que
um paciente adulto e capaz, tem o direito de rejeitar qualquer ou todas as
formas de intervenção médica, inclusive tratamento para salvar ou prolongar a
vida. O tratamento dado ao paciente foi contrário às instruções claras e
inequívocas que o paciente expressou em tempo, quando estava plenamente apto a
consentir. O paciente alegou ter recebido instruções claras e estava plenamente
ciente dos riscos, inclusive sabia que sua chance de recuperar sua saúde para
uma vida normal seria reduzida. O paciente ainda isentou o médico e sua equipe
de quaisquer responsabilidades pela sua decisão de recusar transfusão de
sangue. A transfusão não era necessária e procedimentos alternativos sem sangue
estavam à disposição dos médicos.
A
Suprema Corte acolheu o recurso de apelação, concordou que houve descumprimento
de contrato, entendeu que a decisão da primeira instância foi incorreta e
determinou que fosse encaminhada para um novo julgamento, reconheceu que houve
danos emocionais causados pela má conduta do médico e que qualquer violação de
um direito legal incorre em danos, autorizando a propositura de uma ação de
reparação de danos.
Suprema
Corte de Tokyo, Japão Date of the Judgment 2000.2.29
Case Number 1998(O)Nos.1081, 1082
A
Suprema Corte rejeitou recurso de apelação de médico processado por
responsabilidade civil por ter realizado transfusão de sangue sem consentimento
da paciente.
A
paciente foi informada que tinha um tumor maligno no fígado. Como o médico lhe
disse que era impossível realizar a cirurgia sem transfusão de sangue, a
paciente procurou uma outra instituição médica onde seria capaz de fazer a
cirurgia sem sangue. O médico desta instituição disse que seria possível
realizar a cirurgia sem transfusão de sangue, se não houvesse metástase. Antes
da cirurgia, a paciente fez uma declaração que foi devidamente assinada por ela
e pelos médicos, onde afirmava que se recusaria a receber transfusão de sangue,
isentando a equipe médica, funcionários e o hospital de quaisquer danos
decorrentes por sua recusa. Durante a cirurgia para a retirada do tumor, a
paciente perdeu cerca de 2.245 mililitros, e os médicos decidiram transfundir.
Após receber alta do Hospital a paciente faleceu.O médico estava ciente de que
a paciente havia entrado no hospital com a intenção de fazer a cirurgia para a
retirada do tumor, e que não aceitaria transfusão de sangue sob hipótese alguma
por razão de suas convicções religiosas. Embora o médico estivesse ciente de
que uma transfusão pudesse ser necessária durante a cirurgia, ele não explicou
para a paciente da possibilidade de transfundir, se não houvesse outro jeito de
salvar a sua vida, de modo que optou por fazer a transfusão de sangue na
paciente sem o seu consentimento. Diante das condições indicadas, o médico
privou a paciente do seu direito de decidir livremente em fazer ou não a
cirurgia. Portanto, o médico deve ser responsabilizado civilmente pelos danos
morais em compensação ao sofrimento mental provocado na paciente por conta
desta situação.
A
Suprema Corte entendeu que quando um paciente expressa sua recusa em receber
qualquer tratamento médico, envolvendo uma transfusão de sangue por causa de
suas crenças religiosas, o direito de tomar tal decisão deve ser respeitado,
por se tratar de direitos pessoais. Os médicos deveriam ter explicado para a
paciente que a política do Hospital era a de transfundir em casos emergenciais,
deixando que a paciente pudesse decidir se faria a cirurgia ou não. Uma pessoa
que viola intencionalmente ou de forma negligente o direito de outra pessoa, é
obrigada a indenizá-la por danos decorrentes dessa violação. O acórdão foi
proferido de forma unânime.
A fundamentação dessas decisões se
baseia adicionalmente no fato de que diante dos avanços tecnológicos e das
pesquisas médicas atuais, não é mais possível aceitar a afirmação de que as
transfusões de sangue sejam a única opção para o paciente.
O próprio Código de Ética Médica
declara que os médicos têm o dever de se manterem informados e atualizados com
relação às novas técnicas disponíveis e por isso, eles precisam deixar de lado
qualquer preconceito com relação à religião, pois se por um lado há uma
motivação religiosa por parte das Testemunhas de Jeová, por outro lado, novas
técnicas em opções terapêuticas não tem qualquer relação com religião, mas sim,
diz respeito à uma ampliação do conhecimento do profissional da saúde.
Como já dito anteriormente, assim
como qualquer profissional que deseja atingir a excelência, o médico deve
tornar-se perito na arte médica, sendo imprescindível o estudo e a atualização
constante, de modo a estar ciente de todos os meios disponíveis e atuais de
diagnósticos e tratamentos cientificamente reconhecidos, a fim de usá-los em
benefício do paciente.
Julgados
disponíveis em:
https://elainefrancoadv.jusbrasil.com.br/artigos/640178941/direito-de-recusa-de-transfusao-de-sangue