segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Hospital é condenado por não informar ao paciente os riscos de uma cirurgia



Íntegra da matéria publicada em 2 de agosto de 2018.

A 4ª turma do STJ garantiu indenização para um jovem e seus pais após sequelas resultantes de uma cirurgia. O caso não tratou de erro médico, mas sim da falta de informação adequada para o paciente sobre os riscos do procedimento. O colegiado acompanhou o voto-vista divergente do ministro Luis Felipe Salomão.

O jovem submeteu-se a procedimento cirúrgico anos após um acidente de trânsito por conta de tremores nas mãos. A cirurgia foi feita nos dois lados do cérebro, e com ela o paciente perdeu a capacidade de realizar atividades básicas e passou a depender de cadeira de rodas, entre outras sequelas.

O TJ/DF entendeu pela inexistência de culpa do médico e afastou a responsabilidade do hospital, afirmando que a ausência de registro da comunicação de informação ao paciente não significa que não foi alertado dos riscos, uma prática na atividade médica.

Para dizer que não houve falha no dever de informação a Côrte de origem assentou que (i) sempre há risco nos procedimentos; (ii) a família tinha boa condição socioeconômica e por isso deveria ter conhecimento dos riscos; e que (iii) a não existência de documentação das informações passadas não quer dizer que não foram transmitidas.

O relator do recurso no STJ, desembargador convocado Lázaro Guimarães, manteve o acórdão.

Dever de informação - Exercício da autodeterminação

O ministro Salomão apresentou voto-vista na sessão desta quinta-feira, 2, divergindo do relator. O ministro citou doutrina atestando a importância do reconhecimento da autonomia do paciente e sua capacidade de se autogovernar, fazendo escolhas e agindo conforme suas próprias convicções.

Além da Constituição (art. 5º, II), de documentos internacionais (Parecer sobre Direitos dos Pacientes, Declaração de Lisboa) e dos princípios do código de ética médica, o ministro destacou a previsão do CDC de informação clara e adequada ao consumidor.

“Inexiste no ordenamento jurídico brasileiro qualquer norma que imponha o consentimento escrito. Não há necessidade de ser escrito, e sim de ser provado e expresso. Pode até ser verbal. No código consumerista o direito à informação é considerado direito fundamental do consumidor.”

Conforme o voto de Salomão, o consentimento informado é manifestação do direito fundamental de autodeterminação do paciente e confere legitimidade ao ato médico. S. Exa. narrou que a doutrina que trata do tema invoca precedente do ministro Rui Rosado (de 2002) no qual já se falava em obrigação do consentimento informado.

“O acórdão [de origem] adota conjecturas sem nenhuma base na prova dos autos. O voto vencido, esse sim, disse com base na perícia, que houve crônica dificuldade de comunicação ou entendimento entre as partes. Foram utilizadas ilações e conclusões sem nenhuma base direta. A indenização é decorrente da falta de esclarecimentos acerca dos riscos que interferem na decisão de escolha de realizar o procedimento ou não.”

O ministro Luis Felipe Salomão asseverou que os fundamentos e fatos das instâncias ordinárias não se mostram aptos a demonstrar o cumprimento pelo médico do dever de informação dos riscos.

Quanto ao valor da indenização, manteve o que foi concedido no voto-vencido no Tribunal de origem: R$ 100 mil para o paciente e R$ 50 mil para seus pais. “Pela cirurgia, que poderia não ter acontecido, e levou ao sensível agravamento do seu estado de saúde. São limitações físicas muito mais severas.”

O recurso foi parcialmente provido para deferir apenas a indenização por dano moral. Os ministros Marco Buzzi, Antonio Carlos Ferreira e Isabel Gallotti acompanharam a divergência. A ministra Gallotti destacou:  
   
“Como enfatizou o ministro Salomão, não está em discussão se houve ou não erro médico. O voto-vencido na origem até disse que não se comprovou erro médico. A questão se prende ao direito de dever informação e competia ao médico demonstrar isso. E não foi falta de informação apenas sobre os riscos, mas a própria especificação de que seriam feitos dois procedimentos, um de cada lado do cérebro. Não se tratou de procedimento em caráter de emergência – para salvar uma vida – não há mesmo como se colher uma assinatura ou prestar informação detalhada nessa situação. Seria de todo possível e necessário que fosse feito esclarecimento, se houvesse, de que seriam dois e não apenas um procedimento, e dos dois lados do cérebro, e possíveis riscos, poderia ter sido tomada outra opção pelo paciente e seus pais, de se submeter a um e não aos dois concomitantemente. Evidenciado que não houve prova do cumprimento do dever de informação.”

Processo: REsp 1.540.580
____________________________________________________________________

Fonte:

sábado, 28 de julho de 2018

Parecer Jurídico sobre transfusão sanguínea e pacientes Testemunhas de Jeová





A Diretoria da SBA, juntamente com sua assessoria jurídica, trabalharam no sentido de prestar mais esclarecimentos para os médicos anestesiologistas associados sobre transfusão sanguínea em pacientes Testemunhas de Jeová.
Optamos por produzir um texto que abranja todos os aspectos da relação jurídica estabelecida entre hospital/serviço de anestesia/médico anestesista/paciente nas situações em que o paciente apresenta sua objeção à hemotransfusão.
Retiramos do centro das atenções a religião professada pelo paciente que recusa a transfusão sanguínea, encarando o paciente exclusivamente como um sujeito que possui direitos e obrigações, residente no Brasil, sujeito ao sistema jurídico brasileiro e que, por consequência, terá a autonomia da sua vontade condicionada à legislação vigente.
Conclusão:
A questão atinente aos pacientes que apresentam recusa de hemotransfusão deve ser encarada com respeito, transparência e tranquilidade pela classe médica.
É direito de qualquer paciente, seja ele Testemunha de Jeová ou não, recusar a hemotransfusão, e este direito deve ser respeitado pelos médicos e profissionais de saúde, que não devem coagi-lo a fornecer qualquer tipo de “autorização” e /ou “declaração” em desacordo com suas convicções pessoais.
O médico tem o dever de respeitar a autonomia e autodeterminação do paciente, evitando a transfusão sanguínea, mediante um planejamento prévio e mais apurado do procedimento anestésico e cirúrgico, com a adoção de técnicas alternativas que possam garantir a autodeterminação do paciente.
A regra geral do atendimento do paciente que recusa a hemotransfusão é a seguinte: 1) em não havendo iminente risco de morte, a vontade do paciente ou de seus responsáveis deve prevalecer; 2) em havendo iminente risco de morte, o médico deve tomar as providências necessárias para manutenção da vida e da saúde do paciente, independentemente da sua vontade ou da vontade de seus representantes legais, se não houver outro recurso, senão a hemotransfusão, para salvar a sua vida.
A realização da consulta pré-anestésica para procedimentos eletivos é obrigatória, recomendando-se que seja efetuada em consultório médico antes da admissão do paciente no hospital, ocasião em que o médico anestesiologista tomará conhecimento das restrições impostas pelo paciente, bem como do seu quadro clínico, o que permitirá o planejamento adequado do procedimento anestésico de forma a evitar ao máximo a transfusão sanguínea, a qual somente será realizada em caso extremo, de risco iminente de morte.
Deverá o médico anestesiologista recusar-se a realizar o procedimento anestésico nas seguintes circunstâncias: a) de não se sentir capacitado para a realização de procedimento anestésico sem hemotransfusão, com a aplicação de técnicas alternativas; b) se o paciente não se encontrar em condições clínicas adequadas; e c) em situação em que o centro cirúrgico ou a equipe de saúde não esteja em condições de garantir o sucesso das técnicas alternativas necessárias.
Nas cirurgias eletivas, em havendo motivação de ordem pessoal que coloque o médico em conflito com os seus ditames de consciência, o mesmo poderá apresentar sua objeção e recusar-se a prestar os serviços de caráter eletivo, excetuada a situação de ausência de outro médico que possa atender o paciente.
No caso de cirurgias de urgência e emergência, se esgotados todos os meios e técnicas alternativas disponíveis no momento do procedimento, e estando o paciente em risco de morte, sendo a hemotransfusão a única alternativa de tratamento possível, o médico anestesiologista está legalmente autorizado a procedê-la, independentemente de tratar-se de paciente menor de idade ou adulto, não necessitando de ratificação pelo paciente ou seu representante legal.
As instituições hospitalares devem organizar os seus serviços, na forma estabelecida no artigo 2º da Resolução CFM nº 2.174/2017, garantindo os direitos de personalidade dos pacientes e a segurança dos procedimentos cirúrgicos e anestésicos a serem realizados (com ou sem transfusão de sangue) em suas instalações.
Por fim, o direito de recusa à hemotransfusão deve ser garantido e observado por todos aqueles que se relacionam com o paciente (familiares, médicos, enfermeiros, hospitais e Estado), de forma a conferir ao paciente um tratamento respeitoso, que viabilize a criação de um ambiente de civilidade e acolhimento nos serviços de saúde de todo o país.”
Responsabilidade técnica deste parecer: Dra. Adriana de Alcântara Luchtenberg e Dra. Claudia Barroso de Pinho Tavares Montanha Teixeira – Assessoria Jurídica da SBA.
Diretoria da Sociedade Brasileira de Anestesiologia
______________________________________________________

quinta-feira, 31 de maio de 2018

O Mercado de Diagnósticos de Transfusão de Sangue


Um novo relatório intitulado "Mercado de Diagnósticos de Transfusão de Sangue", revelou que o mercado global de diagnóstico de transfusão de sangue foi avaliado em 3,0 bilhões de dólares em 2016 e deverá crescer 5,9%  de 2017 a 2025. A América do Norte deve dominar o mercado global devido ao aumento da adoção de testes moleculares novos e avançados e no aumento da prevalência de doenças crônicas. Os mercados emergentes, como China e Índia, devem impulsionar o crescimento na Ásia-Pacífico.  Espera-se que o mercado de diagnósticos de transfusão de sangue na região cresça mais de 7,1% de 2017 a 2025.

A demanda por transfusão de sangue e componentes sanguíneos é alta em todo o mundo devido à grande população de pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos e que sofrem de doenças crônicas. A introdução de novos produtos tecnologicamente avançados e a mudança para a automação de instrumentos é projetada para impulsionar o mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue. Por exemplo, a introdução do teste de amplificação do ácido nucleico (NAT) para o rastreio de doenças moleculares e a tipagem sanguínea levou a uma melhoria da eficiência e a um tempo de resposta reduzido. Isso aumentou a adoção de instrumentos automatizados por bancos de sangue e hospitais, o que, por sua vez, aumenta o mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue. 

Organizações como a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Aliança Europeia do Sangue e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) estão envolvidas em programas de segurança em transfusões sanguíneas. Espera-se que estas iniciativas reforcem os pré-requisitos para o rastreio do sangue, incluindo o rastreio das doenças dos dadores. Em dezembro de 2015, a Alemanha anunciou o investimento de 10,8 milhões de dólares para a implementação e adoção eficiente do Programa de Transfusão de Sangue Seguro (SBTP).

O segmento de kits e reagentes dominou o mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue em termos de receita em 2016. O segmento deve expandir 6,0% durante o período de previsão. Fatores como o aumento da conscientização e a ênfase nos diagnósticos de transfusão sangüínea, especialmente em países emergentes, devido ao aumento da incidência de doenças transmitidas por transfusão, como hepatite C e HIV, são os principais fatores que impulsionam o segmento de kits e reagentes. Os que operam no mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue se concentram na introdução de novos instrumentos, kits e reagentes baseados em novas técnicas. Os diagnósticos de transfusão de sangue são altamente utilizados para o rastreamento de doenças.  O aumento na incidência de infecções transmitidas por transfusões, especialmente em países de renda média-baixa e baixa renda, é o fator-chave que aumenta o segmento de rastreamento de doenças.

Em termos de usuário final, o mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue foi classificado em hospitais, bancos de sangue, laboratórios de diagnóstico, empresas de fracionamento de plasma e outros. O segmento de bancos de sangue detinha uma importante participação de mercado em 2016. A projeção é de que o segmento tenha um crescimento mais rápido de 6,0% durante o período de previsão. O aumento no número de bancos de sangue e hemocentros em todo o mundo, e o aumento moderado do número de doações de sangue a cada ano, exigindo testes de doadores e testes de triagem de doenças, são os principais fatores que impulsionam o segmento dos bancos de sangue. O aumento do número de pacientes que necessitam de transfusão sanguínea nos hospitais e o aumento de testes e exames de grupo sanguíneo realizados em hospitais são os principais fatores que impulsionam o segmento de hospitais.

Em termos de receita, a América do Norte foi o principal mercado para diagnósticos de transfusão de sangue em 2016. Elevado percentual de doadores de sangue ativos e voluntários nos EUA e Canadá, aumentaram o número de transfusões de sangue por ano e várias políticas de transfusão de sangue estão sendo implementadas em relação à segurança e testes de sangue para doenças infecciosas são atribuídos à alta participação de mercado da América do Norte. Os EUA têm fortes políticas para a triagem de sangue e a maior taxa de adoção de testes NAT para triagem de patologias dos doadores.

A Europa é o segundo maior mercado de diagnósticos de transfusão de sangue. O aumento na demanda por kits e reagentes para diagnósticos pré-transfusionais e fabricantes domésticos que introduzem novos kits e reagentes para rastreamento de doenças e aplicações de grupos sanguíneos provavelmente acelerarão o crescimento do mercado na Europa. 

O aumento das iniciativas do governo em termos de financiamento e doações, o aumento da prevalência de doenças transmitidas pelas transfusões nesses países e o aumento do número de transfusões de sangue realizadas a cada ano estimulam o crescimento do mercado de diagnósticos de transfusão de sangue na Ásia-Pacífico. 

O mercado no Oriente Médio e na África foi avaliado em 350 milhões de dólares em 2016 e deverá crescer a uma taxa 5,5% de 2017 a 2025. Os fabricantes que operam no mercado de diagnóstico de transfusão de sangue na América Latina estão focados em oferecer kits e reagentes que são compatíveis com diferentes instrumentos. A natureza de alto volume de kits e reagentes de baixo custo provavelmente abastecerá o mercado da região.

O relatório também fornece os perfis dos principais atuantes no mercado global de diagnósticos de transfusão de sangue. Estes incluem a Bio-Rad Laboratories, Inc., a Grifols SA, a Ortho Clinical Diagnostics, a Abbott, a F. Hoffman-La Roche Ltd., a Immucor, Inc., a Quotient Limited, a BAG Healthcare GmBH, a DiaSorin SpA e a Hologic, Inc.. A presença geográfica e as parcerias para o desenvolvimento de soluções inovadoras são as principais estratégias adotadas pelos principais fabricantes. Em junho de 2017, a Immucor, Inc. anunciou um acordo de automação de 10 anos com a CoLabs Laboratory Medicine Network para impulsionar inovações por meio de soluções de reagentes, automação escalável e gerenciamento de dados.

Diante de tantos investimentos, não é difícil entender a razão do interesse pela transfusão de sangue como uma "opção" terapêutica. Afinal, são as doenças e seus tratamentos que fomentam todo o mercado mundial, enriquecendo os laboratórios e, consequentemente, aquecendo a economia em escala global.

Fonte:


quarta-feira, 30 de maio de 2018

Programas de Gerenciamento do Sangue do Paciente – Realidade Internacional


Nove hospitais públicos portugueses vão iniciar um projeto-piloto para reduzir o número de transfusões de sangue, uma medida que se fosse aplicada em nível nacional diminuiria pela metade as transfusões.

Trata-se da implementação do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente PBM – Patient Blood Management, técnica de conservação do sangue do paciente que já está sendo amplamente utilizada no cenário internacional.

O PBM já está implementado com uma elevada taxa de referenciação em Lisboa, já com casos bem-sucedidos e em relação aos quais, em condições normais, seria quase inevitável a utilização de sangue no processo intraoperatório.

O objetivo do programa é evitar a administração desnecessária de sangue e derivados, fazendo com que o sangue do paciente seja preservado como recurso único e insubstituível e utilizado de forma restritiva com o objetivo de fazer com que os hospitais criem estratégias para a otimização dos pacientes de risco no pós-operatório a fim de minimizar a utilização de sangue alogênico e reduzir procedimentos transfusionais.

A transfusão é uma terapêutica altamente utilizada, porém com elevados riscos associados.

A Accumen Inc., empresa americana parceira de desempenho em assistência à saúde, desenvolveu um programa abrangente de Gerenciamento do Sangue do Paciente para melhorar os resultados dos pacientes e agregar valor ao sistema de saúde incluindo 45 hospitais em 14 estados. Em apenas um ano, uma campanha intitulada Save Blood, Save Lives (Salve Sangue, Salve Vidas), resultou em uma redução de mais de onze mil unidades de glóbulos vermelhos reduzindo o risco associado às transfusões como as infecções hospitalares adquiridas, eventos trombóticos, reações transfusionais, mortalidade e morbidade.

A equipe da Accumen desenvolveu uma matriz de priorização baseada em evidências para escalar seu Programa de PBM, que incluiu desenvolvimento de infraestrutura, educação e conscientização clínica, diretrizes clínicas, análises de pedidos de sangue, processos de benchmarks e análises de transfusões significativas.

A diminuição das transfusões resultou, automaticamente, em ganhos para a saúde, pois, reduziu as infecções hospitalares, a duração das internações e a recidiva de neoplasias, sendo também financeiramente vantajosa.

O PBM não significa apenas não dar sangue ou apenas tratar a hemorragia, mas também prevenir, aumentar a tolerância do doente, utilizando produto mais adequado, como o ácido tranexânico, agente fibrinogênico, complexo protrombínico e outros, monitorando atentamente o doente, oferecendo uma terapêutica adequada e específica a cada doente no contexto específico de cada intervenção.
Para tanto, imprescindível é a existência de um local onde os doentes possam ser otimizados no pré-operatório, além da colaboração da equipe médica hospitalar através de um programa multidisciplinar, buscando otimizar o diagnóstico e o manejo da anemia, minimizando o sangramento.

O PBM é um programa que necessita de uma grande colaboração institucional envolvendo cirurgiões, imunohemoterapeutas e anestesiologistas, especialidades que precisam estar obrigatoriamente presentes formando uma equipe motivada para a utilização de técnicas de minimização de perda hemorrágica intraoperatória.

Entretanto, para que isso aconteça, seriam necessárias mais consultas além da utilização de fármacos alternativos como o ferro intravenoso, a vitamina B12, o ácido fólico e agentes capazes de controlar as alterações de coagulação.

Segundo António Robalo Nunes[i], a grande dificuldade “é combater o constrangimento, o atavismo, as barreiras, a resistência à novidade, e gerar o entusiasmo de todo o grupo, sendo que se trata de uma tarefa inevitavelmente multidisciplinar”.[ii]

A primeira parte do processo seria identificar no pré-operatório e em tempo útil os doentes com anemia, permitindo tratar a deficiência de ferro antes da cirurgia, avaliando as alterações da competência hemostática. A existência de anemia é o principal fator de probabilidade para uma transfusão de sangue. Essa identificação nem sempre é feito em tempo útil e a ideia do programa é tornar esta gestão de sangue do doente uma cultura institucional. A segunda parte, na fase intraoperatória, é a monitoração e a diminuição das perdas hemorrágicas. Finalmente, no pós-operatório, deve haver uma análise criteriosa dos cenários que poderão determinar a real necessidade transfusional.

A presidente da Sociedade Portuguesa de Anestesiologia (SPA), Rosário Órfão[iii] diz que “a Anestesiologia é uma especialidade de resposta imediata, mas também de antecipação”, uma vez que os anestesiologistas acompanham o doente nos períodos pré, intra e pós-operatório, tendo um papel importante no contexto do programa.

A vontade de fazer o bem envolve o trabalho em equipe, o espírito de cooperação, o desenvolvimento de novas técnicas, o aprimoramento dos conhecimentos, a valorização do sangue como sendo único e a criação de protocolos com aspectos funcionais específicos para cada instituição de acordo com a sua dimensão e complexidade, sempre visando o bem estar do paciente.

Fonte:




[i] http://hotc.pt/medicos/antonio-robalo-nunes/
[ii] https://justnews.pt/noticias/patient-blood-management-agrega-cirurgies-anestesiologistas-e-imunohemoterapeutas/www.facebook.com/hospitalpublico/www.instagram.com/jornalmedico.csp#.Ww7PNEgvxdg
[iii] https://www.justnews.pt/noticias/anestesiologia-tem-papel-determinante-no-contexto-de-patient-blood-management#.Ww7TJkgvxdh

domingo, 18 de fevereiro de 2018

Medicina sem Sangue




Anos atrás, coordenadores do Sistema de saúde Johns Hopkins de Baltimore, fizeram uma avaliação sobre o número de transfusões de sangue realizadas anualmente em suas instalações e, preocupados que em alguns casos as transfusões estavam sendo realizadas em excesso, procuraram obter mais informações para determinar a frequência e a necessidade de tais procedimentos.

De acordo com o diretor do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente e Centro de Cirurgia e Medicina sem Sangue, Dr. Steven Frank, esse foi o motivo do desenvolvimento do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente que foi lançado em 2012, e teve por objetivo a redução dos riscos e dos custos, além da melhoria dos resultados por meio da prática transfusional baseada em evidências.

Um estudo do Programa mostrou que o Sistema de saúde Johns Hopkins economizou mais de dois milhões de dólares anualmente com custos de aquisição de bolsas de sangue, representando um retorno de quatrocentos por cento no investimento para o apoio ao Programa.

Além de proporcionar um excelente atendimento a pacientes que não aceitam transfusões de sangue por motivos religiosos, o fato de possuir um Programa “sem sangue”, além de atrair mais pacientes, resulta em pacientes gratos, e ainda habilita o médico a “fazer mais com menos” em benefício de outros pacientes do hospital.

Uma vez que o sangue é mal reembolsado ou nem mesmo é reembolsado, todas as unidades de bolsas de sangue economizadas representam dinheiro que retorna ao fundo hospitalar. Mas os benefícios do Programa vão além do econômico. O Programa está relacionado à melhores resultados para o paciente, como a redução dos  riscos de doenças transmitidas por meio das transfusões de sangue, garantindo a segurança do paciente.

Recomendações específicas foram desenvolvidas para a redução do uso do sangue no sistema de cuidados da saúde, por exemplo, técnicas anestésicas para evitar a hipotermia e a utilização controlada de hipotensores com o objetivo de diminuir o sangramento e o uso da máquina de recuperação intra-operatória de sangue (cell salvage), que reinfunde o sangue perdido do paciente durante a cirurgia. Além disso, tubos menores de flebotomia estão sendo usados para reduzir a perda sanguínea em testes laboratoriais.

Segundo a diretora do Programa de Gerenciamento de Sangue da Associação Americana de Bancos de Sangue (AABB), Nikky D’Amour, muitos fatores contribuiram para o desenvo  lvimento do campo de gerenciamento de sangue do paciente nos Estados Unidos.

Um deles era o de tratar pacientes Testemunhas de Jeová, cujas convicções religiosas fazem com que não aceitem receber os componentes primários do sangue. Com o objetivo de evitar a necessidade das transfusões, esses pacientes são normalmente submetidos a cuidados proativos para diagnosticar e tratar a anemia e a melhorar os resultados.

Evitar transfusões de sangue desnecessárias tem se tornado uma prioridade, à medida que mais e mais estudos têm destacado os riscos associados às transfusões. Além do mais, como benefício adicional, reduzir o número de transfusões desnecessárias ajuda as instituições a se adaptar às mudanças de suprimento de sangue, resultando em economia financeira.

Com base nas experiências positivas da medicina sem sangue e nas pesquisas quanto às estratégias de transfusão restritivas, os profissionais começaram a ampliar esse novo e melhorado método de tratamento para pacientes em um maior âmbito populacional. Ainda mais importante, isso está sendo feito de um modo que coloca as necessidades do paciente como centro no processo de tomada de decisão e não prejudica a disponibilidade de sangue em casos de trauma.

A ampla divulgação do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente tem mudado a maneira em que o sangue é administrado. Médicos educadores têm encorajado seus alunos a confiarem nas orientações sobre medicina transfusional baseada em evidências e essa tendência continua a aumentar.

No entanto, ainda há a necessidade de padronizar a estrutura do Programa de Gerenciamento do Sangue do Paciente para dar consistência ao atendimento de pacientes em todas as instituições. Nos Estados Unidos, dados mostram que o retorno do investimento para a implementação do Programa vale o custo, e têm evidenciado uma melhoria métrica relacionada a resultados de qualidade, além de uma economia institucional geral.

A Medicina sem Sangue é hoje uma realidade que muitos profissionais da saúde ainda precisam aprender a praticar. Para isso é necessária uma mudança de atitude, ou seja, reconhecer que é preciso  ampliar seus conhecimentos de modo a acompanhar os avanços tecnológicos e os estudos da Medicina baseada em evidências para que possam colaborar com as necessidades do paciente e respeitar suas decisões.

Um trabalho conjunto de respeito e colaboração e uma boa relação médico-paciente trazem benefícios para todos.

__________________________________________________________


Fonte:

AABB (Advancing Transfusion and Cellular Therapies Worldwide). The Evolution of Patient Blood Management. Vol. 20. n. 1. Jan./Feb. 2018. Disponível em: http://www.aabb.org/programs/publications/news/Documents/aabbnews-preview.pdf#search=evolution%20patient%20blood%20management



sábado, 2 de setembro de 2017

Iminente Risco de Morte



Segundo o Dicionário Informal, risco iminente é o perigo de acontecer um fato indesejado em curto prazo. No caso a ser abordado, trataremos do iminente risco de morte, muito comum no ambiente de emergência hospitalar.

O iminente risco de morte é a condição crítica do paciente diante da linha mais tênue entre a vida e a morte. Motivo de agonia e desespero para os entes queridos, que muitas vezes, mesmo sem acreditar em Deus se apegam a Ele como último fio de esperança à espera de um milagre.

O iminente risco de morte faz parte da nossa vida, afinal viver é um risco. Mas o iminente risco de perder a vida não deve jamais excluir o nosso direito à autonomia e à dignidade. Isso não deve dar a ninguém o direito de suprimir nossa autodeterminação.

Por esse motivo, o assunto em questão visa a compreensão da necessidade de exclusão desse termo do Código de Ética Médica, sob o ponto de vista bioético tão amplamente difundido, com base nos direitos e nas garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal.

O Código de Ética Médica estabelece em seu artigo 31 que é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

A exceção indicada no artigo quer dizer que se houver iminente risco de morte, o profissional médico deverá desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.

Entretanto, o artigo 34 diz que é vedado ao médico deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Isto significa que o médico deverá informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos (mesmo se o risco for de morte por fazer ou por deixar de fazer o tratamento) e os objetivos do tratamento, porém, se houver iminente risco de morte, o médico irá desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas.

Qual é então o sentido de informar ao paciente, se o próprio Código de Ética permite claramente que a vontade do paciente seja desrespeitada em caso de iminente risco de morte?

O paciente tem o direito de recusar determinado tratamento, inclusive uma transfusão de sangue sob o iminente risco de morte? 

Antes de abordar essa questão, é importante entender os direitos legais dos pacientes para recusar qualquer tipo de tratamento médico ou cirúrgico.

O direito comum da autodeterminação corporal estabelece que toda pessoa de mente sadia é mestra sobre seu próprio corpo. Portanto, tal indivíduo é livre para proibir a cirurgia ou tratamento médico considerado por outros como potencialmente salvavidas. Há mais de 100 anos, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos confirmou o significado da autonomia individual. Afirmou que "nenhum direito é mais sagrado, ou é mais cuidadosamente guardado, pelo direito comum, do que o direito de cada indivíduo à posse e ao controle de sua própria pessoa, livre de toda restrição ou interferência de outros, a menos que por autoridade inquestionável de lei. '

Este princípio jurídico fundamental da autodeterminação corporal serve como base para a doutrina do consentimento informado. Nenhum médico ou hospital deve sujeitar pacientes a médicos e/ou a tratamentos sem o devido consentimento informado. O paciente deve ser informado sobre o tipo de tratamento, os meios a serem utilizados e as prováveis ​​consequências da proposta de tratamento para "determinar conscientemente" o que deve ou não deve ser feito em seu corpo, legitimando assim sua autonomia.

A autonomia é um termo derivado do grego "auto" (próprio) e "nomos" (lei, regra, norma). Significa autogoverno, autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade de o ser humano decidir o que é "bom", ou o que é seu "bem-estar".

A autodeterminação é elemento subjetivo, sendo que cada indivíduo possui suas próprias convicções e um limite diferente daquilo que é aceitável para si. O exercício da autonomia é a prática do direito ao respeito pela liberdade individual, à dignidade da pessoa humana como direito fundamental.

Para o exercício da autonomia existe o termo de consentimento livre e esclarecido. O termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) é um documento no qual se reduz a termo o processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido do paciente. No documento devem constar as orientações prestadas ao paciente de maneira clara, direta e individualizada, com destaque para: descrição do tratamento proposto, seus riscos e benefícios para o paciente tendo em vista a sua condição clínica individual, e eventuais cuidados pós-tratamento e prognóstico. É preciso, ainda, constar o direito de revogação do consentimento a qualquer tempo, esclarecendo não haver qualquer ônus ao paciente.

Vale ressaltar que o paciente precisa ser devidamente esclarecido para livremente consentir ou não consentir determinado tratamento. Qual é então o objetivo e a validade desse termo se no final das contas o médico fizer o que quiser?

O relatório da Comissão para o Estudo dos Problemas Éticos em Medicina nos Estados Unidos revelou que o consentimento informado baseia-se em dois valores muito importantes: a própria concepção do bem-estar pessoal do paciente; e o direito à autodeterminação. Esta comissão concluiu também que o princípio da autodeterminação "é melhor entendido como o respeito pelo direito das pessoas de definir e seguir seu próprio ponto de vista sobre o que é bom". Uma decisão histórica da Suprema Corte da Califórnia, determinou que os médicos deveriam obter o consentimento informado dos pacientes antes de realizar certos procedimentos médicos. Há mais de 90 anos, O juiz Benjamin Cardozo declarou: "Todo ser humano adulto e com a mente saudável tem o direito de determinar o que deve ser feito com o seu próprio corpo; e um cirurgião que realiza uma cirurgia sem o consentimento de seu paciente, comete uma agressão, pelo qual ele é responsável por danos.”

Portanto, os médicos que administram um tratamento ou realizam uma cirurgia sem o consentimento do paciente é responsável por agressão. Uma operação cirúrgica no corpo de uma pessoa é uma agressão técnica ou transgressão, a menos que essa pessoa ou alguma outra pessoa autorizada tenha consentido, independentemente da habilidade e cuidados empregados no desempenho da operação.

A doutrina do consentimento informado estabelece que o paciente possui o direito de consentir ou não consentir, ou seja, tem o direito de recusar o tratamento, mesmo se o paciente recusa um tratamento que é considerado pelo médico como único sustentador da vida, pois a autodeterminação do paciente garante a ele a autoridade final para decidir.

As leis são normas de conduta criadas e impostas por um conjunto de instituições para regular as relações sociais. As leis não criaram o homem mas foram criadas pelo homem para proteger o direito de cada um em relação à sociedade.

Assim sendo, o indivíduo, sujeito do direito, utiliza-se das leis para sua proteção, para proteger seu direito de escolha, seu direito de exercer sua autonomia desde que não interfira nos direitos da sociedade como um todo. O médico que respeita a autonomia do paciente não viola nenhum direito da sociedade, mesmo se a escolha consciente do tratamento ou até mesmo a recusa de determinado tratamento resultar em morte.

O médico precisa entender que o poder de vida e morte não está nas suas mãos, com a exceção óbvia da prática de crime, como homicídio, negligência, imperícia ou imprudência, ou até mesmo um erro por acidente. Ele jamais poderá garantir que a aplicação de determinado tratamento ou sua recusa salvará ou não a vida do paciente.

O artigo 32 estabece que é vedado ao médico deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

A utilização de todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, não dá direito ao médico de escolher o tratamento que ele acha mais adequado para o paciente, uma vez que o próprio artigo determina que tal tratamento deve ser em favor do paciente.

Se o médico escolher um tratamento em detrimento da vontade do paciente, ele jamais estará agindo em favor do paciente.

Desrespeitar é violar. Desrespeitar é agredir. Vejamos dois exemplos como comparação:

Primeiro exemplo: Um casal está conversando no bar, ambos estão bebendo. O rapaz diz que quer fazer sexo com a moça, ela nega. No momento em que ela está perdendo a consciência ele a estupra. Houve a violação da vontade. A moça foi violada em sua honra, integridade e dignidade. Houve um crime. Não há na lei nenhuma exceção que dá ao rapaz o direito de violar a vontade da moça, por exemplo, salvo em perda de consciência da vítima.

Segundo exemplo: Testamento é a manifestação de última vontade pelo qual um indivíduo dispõe, para depois da morte, em todo ou uma parte de seus bens. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte. O testamento deve submeter-se a numerosas formalidades que não podem ser descuidadas ou violadas, sob pena de nulidade. Um dos valores necessários à preservação do testamento é: assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o falecimento, confirmar sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa.

E se houvesse uma exceção como essa: “assegurar a vontade do testador, que já não poderá mais, após o falecimento, confirmar sua vontade ou corrigir distorções, nem explicitar o seu querer que possa ter sido expresso de forma obscura ou confusa, salvo em iminente risco de morte.”

A exceção daria ao tabelião o direito de dispor dos bens do testador da forma que lhe conviesse no momento do iminente risco de morte do testador, ou seja, a vontade expressamente declarada do testador poderia não ser respeitada.

Da mesma forma é o “salvo iminente risco de morte” como exceção à vontade do paciente diante da escolha de tratamento médico ou de sua recusa.

Costumo dizer que não há no mundo ninguém mais interessado na minha vida, saúde e bem estar do que eu mesma. É claro que há muitos médicos realmente apaixonados pela profissão, que possuem o genuíno desejo de ajudar o próximo e fazer o bem, mas ainda assim, ele não é mais interessado na minha vida, saúde e bem estar do que eu mesma.

Sejamos honestos, o não respeito pela vontade do paciente sob a alegação hipocrática e o desejo obsessivo de salvar vidas, na maioria das vezes é medo de ser responsabilizado.

É descabido pensar que o médico será responsabilizado por ter respeitado a vontade do paciente.

_________________________________________________________________________________

Referências:

segunda-feira, 10 de julho de 2017

A reforma do código de ética médica: pontual ou estrutural?


Íntegra do artigo da Página do Portal Médico
Artigo publicado em Seg, 29 de Novembro de 1999 21:00, entretanto continua atual e pertinente.

Elcio Luiz Bonamigo - Conselheiro Federal Suplente



O Código de Ética Médica brasileiro, vigente desde o final da década de oitenta, admitiu em sua doutrina, entre outras coisas, muitos avanços relativos à autonomia do paciente que provinham da recém-nascida bioética. O bem elaborado texto tanto permite o entendimento do seu conteúdo doutrinário por parte dos médicos brasileiros em geral como assegura uma análise justa das suas condutas por parte das entidades responsáveis.

Centenas de sindicâncias e processos éticos são analisados à luz do Código de Ética Médica atual e, pelo que se percebe até agora, os conselheiros das Câmaras e Plenários que o interpretam na prática não se defrontam com freqüentes problemas. No entanto, alguns aspectos pontuais estão ausentes do código e outros, presentes, padecem de enfermidades classificáveis em estágios que vão desde leve até terminal.

Um defeito a ser tratado com a maior brevidade possível é o dever imposto ao médico, previsto no artigo 51, de salvar compulsoriamente a vida do paciente em greve de fome, quando em risco de morte, mesmo contra a sua vontade. Neste sentido, temos dois livros nacionais que comentam o Código de Ética Médica e os seus autores estão em posições diametralmente opostas nos comentários a este artigo. De um lado (1), há quem discorde de forma radical: “Pois então que puxe o gatilho. Só que de greve de fome leva mais tempo”. Do outro lado (2), está quem concorde: “Ainda assim, a obrigação de alimentar alguém em perigo iminente de morte não é só um imperativo ético, mas a essência da própria profissão médica, como instrumento inescusável em favor da vida.”

Esta segunda posição, pelo que se pode vislumbrar no panorama internacional, está com os dias contados. Os Códigos de Ética Médica espanhol, português e italiano, por exemplo, respectivamente dos anos 1985, 1999 e 2006, já desobrigaram os seus médicos deste incômodo dever, respectivamente através dos artigos 9º, 57 e 53 dos seus códigos, confirmando a tendência mundial. O código espanhol prevê a possibilidade de encaminhamento para decisão judicial. O italiano proíbe o médico de participar de iniciativas constritivas ou manobras coativas para alimentação. O português proíbe expressamente o médico de participar ou adotar a iniciativa de alimentação coerciva.

O consentimento do paciente é essencial e a liberdade de decisão por parte do paciente é soberana também em greve de fome. Ao médico, do ponto de vista ético, caberia oferecer as informações necessárias, sendo esta a sua ação hipocrática em defesa da vida, sem adotar salvamentos falsamente heróicos de alimentação compulsória se o paciente manifestou antecipadamente, de forma consciente e sem vacilação, a sua vontade contrária, através de testamento vital (que é outro assunto a ser considerado pelo novo código) ou outra forma de manifestação de vontade. Evidentemente não podem ser aqui incluídas as pessoas que sofrem de anorexia, geralmente jovens adolescentes do sexo feminino com problemas psíquicos associados.

Recentemente, a Associação Médica Mundial, através da atualização da Declaração de Malta, feita em 2006, parece ter dado o tiro de misericórdia neste infesto dever ao considerar oficialmente que a alimentação forçada nunca é eticamente aceitável.

A alimentação oral compulsória não é admissível, mas, deve ser registrado, existem decisões judiciais que obrigam e as que desobrigam a forma parenteral de alimentação. Esta doutrina está em construção (3). Isto é verdade. No entanto, neste longo caminho o viés é nítido e a participação do médico deve ser particularmente estudada e revista.

Neste mesmo sentido, mas já partindo para outro aspecto a ser analisado, estão os artigos 46 e 56 do nosso Código que obrigam o médico a adotar providências para salvar paciente testemunha de Jeová através da transfusão sanguínea. Ocorre que, nestes quase 20 anos de vigência do Código, muitas coisas evoluíram e especificamente neste aspecto houve uma verdadeira revolução setorial com a descoberta de substitutos do sangue e outros recursos avançados que podem efetivamente evitar a transfusão.

Estas inovações, por um lado, precisam ser do conhecimento médico. Por outro lado, seria desejável que tais recursos estivessem disponíveis para serem utilizados. Quando indisponível, e ainda possível, o médico deveria transferir os cuidados do seu paciente para quem disponha de tais recursos antes de simplesmente invadir a sua autonomia. Tudo isto sempre em defesa da vida do paciente, mas com respeito. Em contrapartida, se internado em local onde a única alternativa seja a transfusão, o paciente deve pedir alta voluntária caso não concorde (4). E quando for uma criança? A interpretação geral existente é distinta em situações de emergência.

Embora se discuta a participação de representantes da sociedade na reforma do Código de Ética Médica entende-se ser aqui conveniente ou até mesmo indispensável a inclusão destes interessados uma vez que poderão aportar informações fundamentais, bem como legitimar o processo.

Outro aspecto que vem apresentando extraordinária evolução científica é a genética. Os médicos, de uma forma ou de outra, lidarão com assuntos genéticos na sua profissão. Declarações internacionais emitem orientações éticas entre as quais estão: a proibição para modificar células germinais, as formas disfarçadas de eugenia e os diversos aspectos de reprodução humana. A proibição de atuar em linha germinal está contemplada na Declaração Universal sobre o Genoma Humano e Direitos humanos da UNESCO e Resolução CNS nº. 340/2004. A seleção de sexo, exceto para evitar doença grave, está proscrita por muitos Códigos internacionais e pela Declaração sobre Técnicas de Reprodução Assistida da Associação Médica Mundial (2006). O diagnóstico preditivo, já previsto na Resolução CNS nº. 340/2004 e nos documentos citados, também precisa ser incluído, quiçá correlacionando-o ao sigilo. O código atual é praticamente omisso nestes tópicos e precisa incluir expressamente algumas destas orientações de assuntos emergentes na prática médica.

O consentimento informado está previsto, mas não está formalmente regulamentado no Brasil, nem pela Lei e nem pela Ética. No exterior já está previsto na legislação de países como Espanha e Itália e nos respectivos Códigos de Ética. A sua importância foi solidificada pelo artigo 6º da recente Declaração universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO de 2005. Enquanto a nossa lei é omissa, seria conveniente ocupar esta importante lacuna prevendo claramente no teor do código brasileiro os procedimentos em que a sua redação escrita é obrigatória, ou quando basta o consentimento verbal.

Em caso de incapacidade temporária ou permanente é preciso também respeitar as vontades antecipadas que constituem o testamento vital do paciente. Trata-se de assunto que o novo Código também deveria mencionar por ser emergente e de interesse atual. No momento em que o paciente se torna incapaz, a sua vontade prévia, quando de conformidade com a lex artis, continua a prevalecer.

Outros assuntos atuais já estão sendo preparados pelos organizadores da reforma do Código para serem incluídos na discussão pelas inovações existentes, dentre os quais se destacam: telemedicina, nanotecnologia, robótica, publicidade e fim de vida.

O Código Penal brasileiro e o antigo Código de Hamurabi expressam suas penas aos infratores no enunciado do próprio artigo. Os Códigos de Ética não fazem isto e, do ponto de vista internacional, nem existe esta tendência em fazê-lo, segundo alguns que foram pesquisados. Tal método seria até mesmo insólito uma vez que, por exemplo, argentinos, colombianos, equatorianos, espanhóis, italianos e norte-americanos não adotam tal prática. O próprio intróito do atual Código diz que em seu teor existem “normas éticas”. Fiquem, portanto, as penas e respectivas orientações de aplicação para o Código de Processo Ético-Profissional, espantando a inclusão deste aspecto excessivamente judicial-penalista em um Código moral.

Com base estritamente nos comentários até agora feitos bastaria uma reforma pontual para a atualização do Código de Ética Médica de 1988. No entanto, aquilo que se analisa à luz de vela pode não ser verdade à luz do sol.

A Ética é uma parte da filosofia que possui seus próprios princípios. Existem observações de que no Capítulo I do nosso Código de Ética alguns deveres estariam catalogados como princípios (1). Talvez seja esta a explicação para os nossos dezenove princípios, enquanto o código espanhol tem seis e o português apenas três. De qualquer forma, nenhum possui princípios tão pedagógicos quanto aqueles quatro da bioética norte-americana (beneficência, não maleficência, autonomia e justiça) que todos conhecem de cor e salteado por estarem claramente conceituados e identificados embora haja críticas sobre o empobrecimento causado por tal reducionismo.

Os princípios da ética médica não poderiam ser tão poucos como os da bioética e nem podem ambos continuar a dizer as mesmas coisas, ignorando-se mutuamente. Os princípios bioéticos têm o seu lugar do Código de Ética Médica. Todos eles e muitos outros. Paradoxalmente, embora alguns existam de fato, os princípios bioéticos não estão identificados nem mesmo entre os dez do Principles of Medical Ethics da AMA - American Medical Association (5) dos Estados Unidos, país que foi o berço do denominado “principialismo”.

Vários princípios morais constam efetivamente no atual texto do nosso código, mas precisariam ser identificados pelo nome, tais como: da não discriminação (1º), da beneficência (2º), da atualização (5%), da não maleficência (6º), da autonomia (7º), da confidencialidade (11), da preservação ambiental (13), da solidariedade (15) etc. Existem ainda outros princípios altamente utilizados na prática da tomada de decisão pelos médicos que não foram incluídos, nem citados, seja no Código do Brasil, seja naqueles do exterior. Alguns destes princípios, que mantêm relação com o principio bioético da não maleficência, são: da totalidade, do mal menor e do duplo efeito, usados em dilemas que vão desde a amputação de membro à histerectomia por tumor maligno de um útero grávido. As suas menções enriqueceriam ainda mais o texto deontológico. A precaução (cautela) há pouco tempo deixou de ser uma virtude pertencente à prudência filosófica para ser um principio que iniciou no meio ambiente e se difundiu para a medicina onde, entre muitas outras coisas, poderia auxiliar na avaliação dos riscos dos avanços médicos e, até mesmo, nos critérios de afastamento cautelar do médico em processo ético-profissional quando sobram evidências, mas faltam provas.

Também chama a atenção o fato de que a maioria dos Capítulos inicia com: “É vedado ao médico”. Esta metodologia parece desproporcionalmente proibitiva, podendo ser mais orientadora, em sintonia com os Códigos Internacionais recentemente atualizados. Teria sido necessário tanta austeridade? Parece que sim (6). Sim para alguns conteúdos, mas talvez não desta forma generalizada na sua futura apresentação. Vamos ver. Caso estas teses e outras sejam adotadas, ocorreria uma reforma estrutural do novo Código que, além de atualizado, ressurgiria com sua fisionomia totalmente renovada.

http://www.portalmedico.org.br/novocodigo/artigo3.htm

Direito de Escolha do Menor em Lisboa

Tribunal da Relação de Lisboa Íntegra da Reportagem Um jovem de 16 anos diagnosticado com leucemia aguda  recusa-se a receber qualquer trans...